Edição nº 102

Como sobrevivemos?

Como sobrevivemos?

     Está bem que tentemos sempre melhorar nossa saúde, nosso padrão de vida, e nossa relação com a natureza, mas começo a achar que estão exagerando um pouco.
     Recebo pelo correio três litros de produtos que substituem o leite; uma companhia norueguesa quer saber se estou interessado em investir na produção deste novo tipo de alimento, já que, conforme o parecer do especialista David Rietz, “TODO (as maiúsculas são dele) leite de vaca tem 59 hormônios ativos, muita gordura, colesterol,dioxinas, bactérias e vírus”.
     Penso no cálcio que, desde criança, minha mãe me dizia que era bom para os ossos, mas o especialista se adiantou a mim: “Cálcio? Como é que as vacas conseguem adquirir suficiente cálcio para sua volumosa estrutura óssea? Das plantas!” Claro, o novo produto é feito à base de plantas, e o leite é condenado com base em um sem número de estudos feitos nos mais diversos institutos espalhados pelo mundo.
     E a proteína? David Rietz é implacável: “sei que chamam o leite de carne líquida (nunca ouvi esta expressão, mas ele deve saber o que está falando) por causa da alta dose de proteína ali contida. Mas é a proteína que faz com que o cálcio não possa ser absorvido pelo organismo. Paises que tem uma dieta rica em proteínas também tem um alto índice de oteoporosis (ausência de cálcio nos ossos).”
     Nesta mesma tarde, recebo de minha mulher um texto encontrado na internet:
     “As pessoas que hoje tem entre 40 e 60 anos andavam em carros que não tinham cinto de segurança, apoio de cabeça, ou airbag. As crianças iam soltas no banco de trás, fazendo a maior arruaça e se divertindo aos pulos.
     “Os berços eram pintados com tintas coloridas, “duvidosas”, já que podiam ter chumbo ou outro elemento perigoso. “
     Eu por exemplo, sou parte de uma geração que fazia os famosos carrinhos de rolimã (não sei como explicar isso para a geração de hoje – digamos que eram bolas de metal presas entre dois aros de ferro) e descíamos as ladeiras de Botafogo, usando os sapatos como freio, caindo, se machucando, mas orgulhosos da aventura em alta velocidade.
     O texto continua:
     “Não havia celular, nossos pais não tinham como saber onde estávamos: como era possível? As crianças jamais tinham razão, viviam de castigo, e nem por isso tinham problemas psicológicos de rejeição ou falta de amor. Na escola existiam os bons e os maus alunos: os primeiros passavam para a próxima etapa, os segundos eram reprovados. Não se procurava um psicoterapeuta para estudar o caso – exigiam apenas que se repetisse o ano.“
     E mesmo assim sobrevivemos com alguns joelhos arranhados, e poucos traumas. Não apenas sobrevivemos, como nos lembramos, com saudade, do tempo em que leite não era veneno, a criança precisava resolver seus problemas sem ajuda, brigar quando necessário, e passar grande parte do dia sem jogos eletrônicos, inventando brincadeiras com os amigos.
     Mas voltemos ao tema inicial da coluna: resolvi experimentar o novo e milagroso produto que substituir o leite assassino.
     Não consegui passar do primeiro gole.
     Pedi que minha mulher e minha empregada experimentassem, sem explicar o que era aquilo: as duas disseram que jamais tinham provado algo tão ruim na vida.
     Fico preocupado com as crianças de amanhã, com seus jogos eletrônicos, pais com celulares, psicoterapeutas ajudando em cada derrota, e – sobretudo – sendo obrigadas a beber esta “poção mágica” que as manterá sem colesterol, osteoporose, 59 hormônios ativos, toxinas.
     Viverão com muita saúde, muito equilíbrio, e, quando crescerem, descobrirão o leite (a esta altura, possivelmente uma bebida fora da lei). Quem sabe um cientista de 2050 se encarregará de resgatar algo que é consumido desde o início dos tempos?
     Ou o leite será obtido apenas através de traficantes de drogas?

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Edição nº 102