Edição nº 107

Fragmentos de um diário inexistente

Fragmentos de um diário inexistente

O outro lado da Torre de Babel
     Passei a manhã inteira explicando que meus interesses não são exatamente os museus e as igrejas, mas os habitantes do país – e desta maneira, seria muito melhor que fossemos até o mercado. Mesmo assim, eles insistem; é feriado, o mercado está fechado.
     - Onde vamos?
     - Uma igreja.
     Eu sabia.
     - Hoje celebram um santo muito especial para nós, e com toda certeza para você também. Vamos visitar o túmulo deste santo. Mas não faça perguntas, e aceite que às vezes podemos ter boas surpresas para escritores.
     - Quanto tempo de viagem?
     - Vinte minutos.
     Vinte minutos é a resposta padrão: claro que sei que vai demorar muito mais que isso. Mas até hoje eles respeitaram tudo que tinha pedido, melhor ceder desta vez.
     Estou em Yerevan, na Armênia, nesta manhã de domingo. Entro resignado no carro, vejo o monte Ararat coberto de neve ao longe, contemplo a paisagem ao meu redor. Oxalá eu pudesse estar caminhando por ali, ao invés de ficar trancado nesta lata de metal. Meus anfitriões tentam ser gentis, mas estou distraído, estoicamente aceitando o “programa turístico especial.” Eles terminam deixando a conversa morrer, e seguimos em silêncio.
     Cinqüenta minutos depois (eu sabia!) chegamos a uma pequena cidade e nos dirigimos para a igreja lotada. Vejo que estão todos de terno e gravata, uma ocasião formalíssima, e sinto-me ridículo porque visto apenas camiseta e jeans. Saio do carro, pessoas da União de Escritores estão me esperando, entregam-me uma flor, me conduzem pelo meio da multidão que está assistindo a missa, descemos uma escada por detrás do altar, e vejo-me diante de um túmulo. Entendo que ali deve estar enterrado o santo, mas antes de colocar a flor, quero saber exatamente a quem estou homenageando.
     - O Santo Tradutor – é a resposta.
     O Santo Tradutor! Na mesma hora os meus olhos se enchem de lágrimas.
     Hoje é o dia 9 de Outubro de 2004, a cidade se chama Oshakan, e a Armenia, pelo que eu saiba, é o único lugar do mundo que declara feriado nacional e celebra em grande estilo o dia do Santo Tradutor, São Mesrob. Além de criar o alfabeto armeno (a língua já existia, mas apenas sob forma oral), dedicou sua vida passando para seu idioma natal os mais importantes textos da época – que eram escritos em grego, persa ou cirílico. Ele e seus discípulos se dedicaram à tarefa gigantesca de traduzir a Bíblia e os principais clássicos da literatura de seu tempo. A partir daquele momento, a cultura do país ganhou sua própria identidade, que se mantém até hoje.
     O Santo Tradutor. Eu seguro a flor em minhas mãos, penso em todas as pessoas que nunca conheci, e que talvez jamais tenha a oportunidade de encontrar, mas que neste momento estão com meus livros nas mãos, procurando dar o melhor de si para manter a fidelidade do que procurei dividir com os meus leitores. Mas penso, sobretudo, em meu sogro, Christiano Monteiro Oiticica, profissão: tradutor. Que hoje em companhia dos anjos e de São Mesrob, assistindo esta cena. Lembro-me dele grudado a sua velha máquina de escrever, muitas vezes se queixando de como seu trabalho era mal pago (o que é infelizmente verdade até hoje). Logo em seguida, explicava que o verdadeiro motivo de continuar naquela tarefa era seu entusiasmo de dividir um conhecimento que, se não fosse pelos tradutores, jamais chegaria até seu povo.
     Faço uma prece silenciosa por ele, por todos aqueles que me ajudaram com meus livros, e pelos que me permitiram ler obras às quais jamais teria acesso, desta maneira ajudando – anonimamente – a formar minha vida e meu caráter. Quando saio da igreja, vejo crianças desenhando o alfabeto, doces em formas de letras, flores, e mais flores.
     Quando o homem mostrou sua arrogância, Deus destruiu a Torre de Babel e todos passaram a falar línguas diferentes. Mas em Sua infinita graça, criou também um tipo de gente que iria reconstruir estas pontes, permitir o diálogo e a difusão do pensamento humano. Este homem (ou mulher) que raramente nos damos ao trabalho de saber seu nome quando abrimos um livro estrangeiro: o tradutor.

Mover-se é viver
     Estou numa festa de São João, com barraquinhas, tiro ao alvo, comida caseira. A única coisa curiosa é que, de determinado angulo da rua de casas de dois andares, podemos ver os edifícios mais altos do mundo; a festa do interior está acontecendo em plena Nova York.
     De repente, um palhaço começa a imitar todos os meus gestos. As pessoas riem, e eu também me divirto. No final, convido-o para tomar um café.
     "Comprometa-se com a vida", diz o palhaço."Se você está vivo, você tem que sacudir os braços, pular, fazer barulho, rir e falar com as pessoas, porque a vida é exatamente o oposto da morte.
     “Morrer é ficar sempre na mesma posição. Se você está muito quieto, você não esta vivendo".

O rato e os livros
     Quando eu estava internado na Casa de Saúde Dr. Eiras, comecei a ter crises de pânico. Um dia, resolvi consultar o psiquiatra encarregado do meu caso:
     "Doutor, o medo me domina, me tira a alegria viver".
     "Aqui no meu consultório tem um ratinho que come meus livros", disse o médico. "Se eu ficar desesperado com este ratinho, ele se esconderá de mim, e não farei outra coisa na vida a não ser caça-lo. Portanto, eu coloco os livros mais impor­tantes num lugar seguro, e deixo que ele roa alguns outros.
     “Desta maneira, e ele continua um ratinho, e não se torna um monstro. Tenha medo de algumas coisas, e concentre todo o seu medo nelas - para que tenha coragem no resto."

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