Edição nº 207

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O direito como metáfora


O direito como metáfora

Sou uma pessoa que crê no sistema judiciário. Apesar de todos os percalços, vemos – por exemplo - a Suprema Corte dos Estados Unidos desqualificando a tortura como método de interrogatório, mesmo que o presidente da República e seu vice tenham, através de artimanhas legais, tentado justificá-la.

Entretanto, minha crença não é compartilhada por muita gente. Um amigo advogado disse-me que “o direito não foi feito para resolver problemas, mas para prolongá-los indefinidamente”. Apenas como exercício de imaginação, resolvi usar sua tese analisando o Genesis, primeiro livro da Bíblia.

 

Se Deus vivesse hoje, nós todos ainda estaríamos no Paraíso, enquanto Ele estaria ainda respondendo a recursos, apelos, rogatórias, precatórias, mandatos de segurança, liminares – e teria que se explicar em inúmeras audiências sua decisão de expulsar Adão e Eva do Paraíso – apenas por transgredir uma lei arbitrária, sem nenhum fundamento jurídico: não comer o fruto do Bem e do Mal.

Se Ele não queria que isso acontecesse, porque colocou a tal árvore no meio do Jardim – e não fora dos muros do Paraíso? Se fosse chamado para defender o casal, um advogado experiente podia argumentar a tese de “omissão administrativa”; além de colocar a árvore em lugar errado, não a cercou com avisos, barreiras, deixando de adotar os mínimos requisitos de segurança, e expondo todos que passavam ao perigo.

Outro advogado o acusaria de “indução ao crime”: chamou a atenção de Adão e Eva para o exato local onde se encontrava. Se não tivesse dito nada, gerações e gerações passariam por esta Terra sem que ninguém se interessasse pelo fruto proibido – já que devia estar numa floresta, cheia de árvores iguais, e, portanto sem nenhum valor específico.

Mas o Gênesis aconteceu antes do sistema judiciário, e, portanto permitiu que Deus tivesse completa liberdade de ação. Escreveu uma única lei, e encontrou uma maneira de convencer alguém a transgredi-la, só para poder inventar o Castigo. Sabia que o Adão e Eva terminariam entediados com tanta coisa perfeita, e – mais cedo ou mais tarde – iriam testar Sua paciência. Ficou ali esperando, porque também Ele – Deus Todo Poderoso – estava entediado com as coisas funcionando perfeitamente: se Eva não tivesse comido a maçã, o que teria acontecido de interessante nestes bilhões de anos?

Nada.

Quando a lei foi violada, Deus – o Juiz Todo Poderoso – ainda simulara uma perseguição, como se não conhecesse todos os esconderijos possíveis. Com os anjos olhando e divertindo-se com a brincadeira (a vida para eles também devia ser muito aborrecida, desde que Lúcifer deixara o Céu), Ele encontra Adão.

“Onde estás?” Perguntara Deus, que já sabia a resposta. Não o alertou para as conseqüências da resposta. Não disse a famosa frase que tanto ouvimos nos filmes: “tudo que disser pode ser usado contra você”.

“Ouvi seu passo no jardim, tive medo e me escondi, porque estou nu”, respondera Adão, sem saber que, a partir desta afirmação, passava a ser réu confesso de um crime.

Pronto. Através de um simples truque, onde aparentava não saber onde Adão estava, nem o motivo de sua fuga, Deus conseguira o que desejava. Expulsou o casal, seus filhos terminaram pagando também pelo crime (como acontece até hoje com os filhos de criminosos), e o sistema judiciário fora inventado: lei, transgressão da lei, julgamento e castigo.

 
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