Edição nº 81
Da culpa e do perdão
Durante sua peregrinação a Meca, um homem santo começou a sentir a presença de Deus ao seu lado. No meio de um transe, ajoelhou-se, escondeu o rosto, e rezou:
- Senhor, quero pedir apenas uma coisa na minha vida: que eu tenha a graça de jamais ofende-Lo.
- Não posso conceder esta graça - respondeu o Todo-Poderoso.
Surpreso, o homem quis saber o motivo da recusa.
- Se você não me ofender, não terei motivos para perdoa-lo - escutou o Senhor dizer. - Se eu não preciso perdoa-lo, você em breve esquecerá a importância da misericórdia para com os outros. Por isso, continue o seu caminho com Amor, e deixe-me praticar o perdão de vez em quando, para que você também não se esqueça desta virtude.
A história ilustra bem os nossos problemas com a culpa e o perdão. Quando crianças, sempre escutávamos nossa mãe dizendo: “meu filho fez tal bobagem porque seus amigos o influenciaram. Ele é uma pessoa muito boa”.
E desta maneira, nunca assumimos a responsabilidade por nossos gestos, não pedimos perdão – e terminamos esquecendo que também devemos ser generosos quando o outro nos ofende. O ato de pedir perdão nada tem a ver com o sentimento de culpa ou covardia: todos nós cometemos erros, e são justamente estes passos em falso que nos permitem melhorar e progredir. Entretanto, se somos demasiado tolerantes com nossas atitudes - principalmente quando elas terminam ferindo alguém - terminamos isolados, incapazes de corrigir nosso caminho.
Como afastar a culpa, mas ao mesmo tempo ter a capacidade de pedir perdão por um erro?
Não existem fórmulas. Mas existe o bom senso: devemos julgar o resultado de nossas ações, e não as intenções que tivemos ao realiza-las. No fundo, todo mundo é bom , mas isto não interessa e não cura os ferimentos que podemos causar. Uma bela história ilustra o que quero dizer:
Quando era pequeno, Cosroes tinha um professor que conseguiu fazer com que se destaca-se em todas as matérias que aprendia. Certa tarde, o mestre - aparentemente sem motivo - castigou-o com toda severidade.
Anos depois, Cosroes subiu ao trono. Uma das suas primeiras providências foi mandar trazer o mestre de sua infância, e exigir uma explicação para a injustiça que cometera.
“Por que me castigaste sem que eu merecesse?”perguntou.
“Quando vi tua inteligência, soube logo que irias herdar o trono de teu pai”, respondeu o antigo professor. “E resolvi mostrar-lhe como a injustiça é capaz de marcar um homem para o resto da vida.
“Como você sabe o que isso significa” continuou o mestre, “espero que jamais castigue alguém sem motivo.”
Isso me faz lembrar uma conversa que tive durante um jantar em Kyoto. O professor coreano Tae-Chang Kim comentava as diferenças entre o pensamento ocidental e oriental.
“Ambas as civilizações tem uma regra de ouro. No Ocidente, vocês dizem: farei para meu próximo aquilo que gostaria de fazer para mim. Isto significa: aquele que ama, estabelece um padrão de felicidade, que tenta impor a todos que se aproximam.
“A regra de ouro do Oriente parece quase igual:não farei ao meu próximo aquilo que não desejo que ele faça comigo. Mas ela parte da compreensão de tudo aquilo que nos deixa infelizes, inclusive ter que obedecer o padrão de felicidade imposto pelos outros - e isto faz toda a diferença.
“ Para melhorar o mundo, não impomos uma maneira de demonstrar nosso amor, mas - isto sim - de evitar o sofrimento alheio. “
Portanto, respeito e cuidado ao lidar com o nosso irmão. Disse Jesus: “é pelos frutos que se conhece a árvore”. Diz um velho provérbio árabe: “ Deus julga a árvore por seus frutos, e não por suas raízes”. E diz um velho provérbio popular: “quem bate esquece, quem apanha nunca esquece.”